PRÓPRIOS PUNHOS
por Marcela Guimarães
Ela estava de frente ao saguão de desembarque. Havia duas opções: ou ela ficava parada em frente à porta ou passeava pelo aeroporto. Como a ansiedade sempre levava a melhor, a garota escolheu disfarçar. O lugar era claro… Até demais. O astigmatismo fez com que ela fugisse do corredor principal. Tinha também todo o clima de vai e vem de pessoas. Gente indo, gente chegando e ela ali parada, estática no mesmo lugar por anos. Por isso, assistir despedidas angustiava-a. A única coisa a se fazer era procurar por iguais.
Na loja em frente, havia um senhor que vendia souvenirs desde a inauguração do aeroporto. Mas não era nada como chaveiros ou camisetas. O velho vendia coisas finas. Conjunto de xícaras de porcelana, carros e aviões em miniatura, acessórios para baralhos, etc e tal. Tudo bem caro mesmo, e por isso, bom de olhar. A nossa personagem, então, refugiou-se ali.
Entre todas as coisas disponíveis, ela se encantou com um jogo de facas. Faquinha, faca, facão. Até a sonoridade era uma pluma para seus ouvidos. A prata brilhava tanto quanto um riso sarcástico, e por um instante, ela percebeu com susto que os dentes escancarados refletidos nas facas vinham da sua boca.
- Deseja alguma coisa?, perguntou de supetão o velho.
- Só olhando mesmo… Aliás, quanto custa esse faqueiro? Acho que meu pai iria gostar… daqui a pouco o avião dele aterrisa e…
O velho já não olhava para ela. Constrangida, a garota saiu da loja. Gostava do cheiro de coisas guardadas de lá, mas aquele homem era estranho. Fizera-a arrepiar. Fizera-a mentir. Haveria motivos? Quem chegaria de viagem, em instantes, não era o seu pai. Era a mãe. O pai? Oras, o pai, estava prostrado em algum canto por ali. Talvez, porém, o homem conservasse a esperança paciente. Coisas típicas da espera. Coisa de gente velha. Coisa que a juventude não concedia a ela. A espera era para aquela jovem algo a ser furiosamente aniquilado.
Apesar de desejar que as coisas estivessem bem, ela era sensível demais para acreditar. Curioso é que eles não trocavam uma palavra sobre a expectativa de cada um. “Uma viagem é o momento de perdermos de nós mesmos.”, acreditava a moça. Mesmo ela, que nunca viajara de corpo presente, sabia das potencialidades de uma boa viagem. Mas sua mãe, não. Esta, saiu do país como uma morta-viva, na vertente emocional da palavra. Morrer emocionalmente, perder objetivos, viver sem razão é como tornar-se só corpo… um corpo penado por aí.
É algo anti-natural. Viver sem emoção é a face enganadora da morte. Antes morrer de morte morrida. Talvez, fosse melhor a queda do avião. Talvez, melhor que a mãe houvesse seguido na sua pretensão suicida. Uma vez extinguido, poderia o sopro de vida retornar aos pulmões de um quase suicida? Essa era a dúvida que girava na cabeça da menina, nem tão jovem, mas precocemente amadurecida. Dez anos em dez segundos. Se o adulto é realmente triste e sozinho, foi um certo instante que a tornou assim. De repente, ela era adulta.
Você me pergunta: qual o choque que transportou uma garota para o mundo dos adultos? A resposta é simples, a própria matéria sob o qual esse mundo é construído: violência e desespero. Em um dia, a sala de estar era palco de uma discussão sobre roupas e sapatos, no outro o lugar estava coberto de sangue. Pulso, vivo, tenso e rápido. O sangue corria sem parar em meio às lágrimas, gritos e dor. Para quem nunca havia visto mais sangue que mertiolate, aquilo gerou certo fascínio. Se ver tanto vermelho escorrendo do pulso da mãe era horrível, um filete escarlate no seu próprio punho era fascinante. Era um sinal de vida, mesmo a contragosto. Se para a mãe cortar os pulsos era sinal de morte, para ela era vida.
A equação é a seguinte: dor é uma sensação e sentir é viver. Naquele momento, era a única forma encontrada para comunicar ao subconsciente que existiam milhões de células em funcionamento dentro dela. Foi a maneira encontrada para resistir. Mas fazia dias que isso não era mais necessário. Coincidência ou não, desde que viera embarcar a mãe, não sentia mais o desejo de ver sangue. Tudo estava mais calmo. Até que… o visor marcou: Desembarque – voo 741.
She returns
Filha e pai foram para frente do saguão de desembarque. Passageiro após passageiro saia por aquela porta, menos Mamãe. “Angústia é quando respirar sufoca”, pensou a garota caminhando vagarosamente. De repente, a mulher elegante, altiva e queimada de sol vinha em sua direção. Elas sorriram. Havia também um certo brilho nos olhares. Era alegria. Após o abraço e da marca de batom no rosto, a mãe disse:
- Vocês acreditam que a minha mala foi extraviada?
Claro que a garota acreditava. Esse era o tipo de coisa que só acontecia com a mãe dela, uma espécie de gene transmitido à prole. A mãe saiu correndo e a visão da filha embranqueceu por um instante. Uma energia visceral, inevitável e empolgante percorreu cada perímetro do seu corpo. Ela sabia o que iria fazer, buscava a única solução perceptível. Voltou até a loja de souvenirs. O velho conversava com uma velha no balcão. A garota foi até a prateleira e pegou uma das facas.
Veja bem a situação: ela tremia, chorava silenciosamente, olhar vidrado e discrição nenhuma no furto, mas ninguém a viu. Antes a dor física do que o vazio, ela nos faz voltar à essência, à animalidade. Ela estava próxima de um ato de heroísmo. Como que guiada pelo destino, filha bateu de encontro com a mãe. Esta, vendo as lágrimas descontroladas no rosto da menina falou:
- Oh, meu bem! A mãe também morreu de saudade!
Se abraçaram em meio ao impulso, metal, carne, sangue. Elas ainda tremiam na frequência do pulso.
“Jesus não me quer como raio de sol
Pois seus raios de sol não são feitos como eu
Não espere que eu chore
Por todas as razões que você teve para morrer
Nem nunca peça seu amor de mim
Não espere que eu chore
Não espere que eu minta
Não espere que eu morra por ti.”
Um comentário:
Boa história (e boas referências).
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