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sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Terras Candangas

foto: Túlio Moreira Rocha

Brasília confunde. Cidade x distrito. Os lugares são divididos por imensos vazios e recebem nomes técnicos, goianos e nordestinos. Parece tantos lugares, mas é um só. Plano Piloto, SQS, SBN, SOS, Taguatinga, Guará, Samambaia. O primeiro local que conheci foi mesmo a Ceilândia, onde “Santo-Cristo com a Winchester-22 deu cinco tiros no bandido traidor”. Porém, eu poderia ter nascido em Taguatinga ou estudar na UnB. Ao menos disso, Deus me livrou.

Se eu fosse brasiliense, a grandiosidade nunca teria me atingido em cheio. Clarice sentiu-se em Roma e eu estava no Egito. Brasília dói, expõe nossa mediocridade. Se meu avô não houvesse decido o planalto em 1987 e eu morasse em Taguatinga Sul, não haveria supresa: estação de metrô no meio da lama e ponto final. Mas conheceria muito melhor o nordeste do país e talvez usasse “tu” ao invés de “cê”. Rio Grande do Norte na rodoviária do Plano, candanga de nome Willy seria cotidiano. E isso é sério.

foto: Túlio Moreira Rocha

Brasília tem outras coisas estranhas. Ela te faz caminhar horas no meio do nada e te faz dar de cara com obras de arte. Assombro. É caprichosa, cruel, e ainda, interessante. Ônibus aos pedaços em cima da ponte, lanchas e yates embaixo da ponte. E a ponte é linda, arquitetura em função da arte. Brasília cospe na gente, mas a gente ama Brasília. É daqueles amores cruéis, que te bate e te beija. Em cima da Torre da TV, vemos o horizonte sem fim do Distrito Federal. Ainda lá em cima, lembrei: e isso é só um quadradinho no meio do Brasil.

foto: Túlio Moreira Rocha

p.s.1: Algo mais legível sobre Brasília no Diário de Metrô. Gracias aos companheiros de viagem: Mayara, Túlio, Lílian e Sérgio. E também para Zeuxis, Bruno e Belinha que nos receberam super bem. E claro, obrigada Willy. Graças à ela não fomos parar na Estrutural, à meia-noite. Em suas próprias palavras: "Eu fui um anjo que Deus enviou hoje para vocês". E, realmente foi.

foto: Túlio Moreira Rocha

p.s.2: mais fotos aqui.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Brasília por Clarice L.


Brasília é construída na linha do horizonte. - Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente para aquele mundo. Nós somos todos deformados pela adaptação à liberdade de Deus. Não sabemos como seríamos se tivéssemos sido criados em primeiro lugar, e depois o mundo deformado às nossas necessidades.

- Se eu dissesse que Brasília é bonita, veriam imediatamente que gostei da cidade. Mas digo que Brasília é a imagem de minha insônia, veem nisso uma acusação; mas a minha insônia não é bonita nem feia - minha insônia sou eu, é vivida, é o meu espanto. Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles erguerram o espanto deles, e deixaram o espanto inexplicado. A criação não é uma compreensão, é um novo mistério.

- Quando morri, um dia abri os olhos e era Brasília. Eu estava sozinha no mundo. Havia um táxi parado. Sem choffer. - Lucio Costa e Oscar Niemeyer, dois homens solitários. - Olho Brasília como olho Roma: Brasília começou com uma simplificação final de ruínas. A hera ainda não cresceu. - Além do vento há uma outra coisa que sopra. Só se reconhece na crispação sobrenatural do lago. - Em qualquer lugar onde se está de pé, criança pode cair, e para fora do mundo. Brasília fica à beira.

- Se eu morasse aqui, deixaria meus cabelos crescerem até o chão. - Brasília é de um passado esplendoroso que já não existe mais. Há milênios desapareceu esse tipo de civilização. No século IV a.C. era habitada por homens e mulheres louros e altíssimos, que não eram americanos nem suecos, e que faiscavam ao sol. Eram todos cegos. É por isso que em Brasília não há onde esbarrar. Os brasiliários vestiam-se de ouro branco. A raça se extiguiu porque nasciam poucos filhos. Quanto mais belos os brasiliários, mais cegos e mais puros e mais faiscantes e menos filhos. Não havia em nome de que morrer. Milênios depois foi descoberta por um bando de foragidos que em nenhum outro lugar seriam recebidos; eles nada tinham a perder. Ali ascenderam fogo, armaram tendas, pouco a pouco escavando as areias que soterravam a cidade. Esses eram homens e mulheres menores e morenos, de olhos esquivos e inquietos, e que, por serem fugitivos e desesperados, tinham em nome de que viver e morrer. Eles habitaram as casas em ruínas, multiplicaram-se, constituindo uma raça humana muito contemplativa.

- Esperei pela noite, noite veio, percebi com horror que era inútil: onde eu estivesse, eu seria vista. O que me apavora é: é vista por quem?

trecho inicial da crônica de Clarice Lispector sobre Brasília.



p.s.: Escrevo o meu texto quando sair de Brasília. Beijos!