sábado, 23 de janeiro de 2010

Brasília por Clarice L.


Brasília é construída na linha do horizonte. - Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente para aquele mundo. Nós somos todos deformados pela adaptação à liberdade de Deus. Não sabemos como seríamos se tivéssemos sido criados em primeiro lugar, e depois o mundo deformado às nossas necessidades.

- Se eu dissesse que Brasília é bonita, veriam imediatamente que gostei da cidade. Mas digo que Brasília é a imagem de minha insônia, veem nisso uma acusação; mas a minha insônia não é bonita nem feia - minha insônia sou eu, é vivida, é o meu espanto. Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles erguerram o espanto deles, e deixaram o espanto inexplicado. A criação não é uma compreensão, é um novo mistério.

- Quando morri, um dia abri os olhos e era Brasília. Eu estava sozinha no mundo. Havia um táxi parado. Sem choffer. - Lucio Costa e Oscar Niemeyer, dois homens solitários. - Olho Brasília como olho Roma: Brasília começou com uma simplificação final de ruínas. A hera ainda não cresceu. - Além do vento há uma outra coisa que sopra. Só se reconhece na crispação sobrenatural do lago. - Em qualquer lugar onde se está de pé, criança pode cair, e para fora do mundo. Brasília fica à beira.

- Se eu morasse aqui, deixaria meus cabelos crescerem até o chão. - Brasília é de um passado esplendoroso que já não existe mais. Há milênios desapareceu esse tipo de civilização. No século IV a.C. era habitada por homens e mulheres louros e altíssimos, que não eram americanos nem suecos, e que faiscavam ao sol. Eram todos cegos. É por isso que em Brasília não há onde esbarrar. Os brasiliários vestiam-se de ouro branco. A raça se extiguiu porque nasciam poucos filhos. Quanto mais belos os brasiliários, mais cegos e mais puros e mais faiscantes e menos filhos. Não havia em nome de que morrer. Milênios depois foi descoberta por um bando de foragidos que em nenhum outro lugar seriam recebidos; eles nada tinham a perder. Ali ascenderam fogo, armaram tendas, pouco a pouco escavando as areias que soterravam a cidade. Esses eram homens e mulheres menores e morenos, de olhos esquivos e inquietos, e que, por serem fugitivos e desesperados, tinham em nome de que viver e morrer. Eles habitaram as casas em ruínas, multiplicaram-se, constituindo uma raça humana muito contemplativa.

- Esperei pela noite, noite veio, percebi com horror que era inútil: onde eu estivesse, eu seria vista. O que me apavora é: é vista por quem?

trecho inicial da crônica de Clarice Lispector sobre Brasília.



p.s.: Escrevo o meu texto quando sair de Brasília. Beijos!

2 comentários:

Unknown disse...

esse texto é de perder o folego! sério mesmo!

Shirlei Romano disse...

Adoro este texto da Clarice...certa vez me aventurei a falar sobre ele...Se interessar, passa lá :

http://ahistoriafala.blogspot.com/2009/08/brasilias-porque-nao-acredito-que-haja.html