As noites urbanas são as mais convidativas para uma sexta-feira melancólica. A iluminação da cidade, dos carros, das poucas estrelas e da lua. Mas não era daquela vez que eu poderia observar o cotidiano. Ok, pelo jeito iria chover, eu estava só e sem saber onde ir. Caminhava por entre os prédios e a ventania. Deveria decidir logo, antes do perigo. A chuva começou, não teve jeito, corri. Entrei no primeiro buteco à vista e foi ela quem prendeu minha vista. Fumava, bebia, tragava e suspirava. A bebida era como um vinho vulgar, só que mais escuro. Era de fato, preto.
Sentei numa das mesas vazias e pedi vodka. Normalmente pediria uma cerveja, claro. Porém, eu não queria demonstrar minha banalidade de sempre. Não! A vodka escorre pela garganta como ela, forte, amarga e intensa. Eu não pude resistir e ela estava no milésimo cigarro. Coberta pela coragem de quase nunca, sentei-me na mesa com ela.
De cabeça baixa, ela levantou o olhar. Eu queria, deveria, dizer algo, mas só consegui erguer a sobrancelha. Então, ela disse… o que ela me disse? "Como é que ninguém percebeu que eu morri e decidiu me enterrar?” Foi triste. Fiquei sem palavras, talvez sem ar. Murmurei algum argumento fútil sobre a vida. “Você julga viva uma pessoa presa em dias iguais?” Ela me desafiava novamente.
Pedi outra dose para o dono do buteco. Ela acendeu outro cigarro. Eu tentei provar a impossibilidade dos dias iguais. Ela me olhou com desprezo e falou: “Que tipo de vida eu posso ter quando já me vejo 20 anos mais velha?” Sem perceber, eu tossia pela terceira vez. Era a fumaça dos cigarros baratos. O que ela disse?
- Desculpe, eu fumo porque estou esperando uma morte precoce. E preciso me agarrar a algo.
- Quantos anos você tem, garota?
-Vinte e um, que parecem mais que duzentos e dez.
Eu ri com a resposta. “Eu também tenho vinte um anos”, comentei entre outro gole.
-Aceita um cigarro?
A chuva ainda não havia passado.
p.s.: Escrevendo besteiras ao som e à leitura de What she said, música dos Smiths. Aliás, os versos em itálico foram copiados da letra. Na íntegra. Ouve aí embaixo.
Lanchar, papear ou brincar. Era o que a maioria dos alunos faziam durante o recreio, mas ela gostava de, às vezes, variar e ir à biblioteca. Além dos livros, a biblioteca do colégio tinha assinatura de revistas. A menina pegou uma delas, a mais típica para a idade, Capricho. Entre dicas sobre “como encontrar um namorado” ou orientações sexuais para meninas de 13 anos, ela encontrou algo realmente legal. “Você sempre quis tocar / Você sempre quis andar de skate / Você não é um enfeite!” Para uma adolescente, isso era revolucionário. Bem mais que simplesmente o rock’n’roll.**
Na reportagem, uma moça dizia que o papel feminino dentro do rock poderia ser maior do que simplesmente ouvintes, groupies, e por excelentes mas poucas vezes, cantoras e compositoras. Garotas poderiam montar suas próprias bandas e falar sobre os problemas enfrentados. Era o movimento Riot Grrl. A entrevistada era Elisa Gargiulio, vocalista da banda Dominatrix. E a jovem leitora carrega o nome do “patinho feio do rock”: Cindy Faria. A vida dela havia mudado naquele instante.
Anotado o nome da banda, Cindy resolveu investigar na internet. Uma gama de bandas, ideias, músicas apresentou-se para ela. Logo, ela descobriu onde estava a origem do Riot Grrl: anos 90, Estados Unidos e Kathleen Hanna. Revolucionária pela própria existência, não é novidade para ninguém que a música de Kathleen Hanna soa como hino para uma geração de meninas. A historinha é basicamente essa: anos 90, Hanna e cia fundaram uma banda que viria a ser conhecida como símbolo do movimento Riot Grrl. O Bikini Kill e outros grupos Riot Grrl fizeram mais que isso e passaram a apresentar conteúdo feminista em suas letras.
“Só porque meu mundo, querida irmã / É tão fudido de tantos estupros, significa que meu corpo deve sempre ser uma fonte de dor? / Não, não, não. // (…) Eu acredito em possibilidades radicais de prazer.” // Bikini Kill – I Like Fucking.
Assim, o movimento propunha a conscientização por meio da música, que sonoricamente é punk. Encarado como moda passageira ou como uma bomba relógio em potencial, o Riot Grrl ganhou certa notoriedade na época e o apoio de roqueiras velhas de guerra como, Joan Jett. Pouco tempo depois de digerir tanta informação, Cindy já tinha um blog, uma banda e um skate escrito Riot Grrl.
Há poucos quilômetros e dias de Cindy, três garotas, movidas por motivos diferentes, sonhavam ter uma banda. Irmã, irmã e prima. Guitarra, baixo e bateria. Elas queriam ser o Blink-182 versão menina. Tom, Mark e Travis eram lindos e o som era algo realmente empolgante. Porém, havia um problema. Ninguém tocava. Meses depois, mesmo com o problema não resolvido, dois a mais na turma e pronto. Eram As Trepadeiras Selvagens. Para fazer punk não precisa-se tocar muito mesmo. Em pouco tempo, Lorrayne Vieira (ou melhor, Lola), tocava baixo e gritava violentamente nos back vocals: “É tempo de revolução (revolução) / O poder está em nossas mãos (autogestão).”**
Os versos ilustram uma das influências de Lola e Cindy. O grupo brasiliense Bulimia fazia um punk rock direto, agressivo e com letras ácidas. Mesmo extinta, a banda ainda mexia com os sentidos e ensurdecia vizinhos por aí. Além disso, a história das meninas e do Bulimia partia da mesma veia pulsante. Como a história do grupo é conhecida por todas Riots que se prezem (fui uma, beijos!), eu conheci a antiga guitarrista no show da sua nova banda. Contatos presenciais feitos, 4 anos depois ainda fui tocar no mesmo assunto com ela. O Rock feito por garotas, no caso de Bianca, por mulheres. No Orkut e vamos lá:
“MarceLa: Olá! Faço jornalismo em Goiânia e gostaria de fazer uma entrevista online com vc sobre a sua carreira e a banda Bulimia para uma reportagem da faculdade. Você topa? Posso mandar as perguntas por email?”
Simpática, ela atendeu o pedido e ficamos um pouco mais perto da história do Bulimia. “Sempre quis montar uma banda. Já tinha entrado em algumas bandas, de meninos, claro, e já existia a ideia e vontade para montar algo só com as meninas”, contou Bianca Martim guitarrista do Bulimia. Assim como Lola e cia, o grupo não dominava muito bem os instrumentos, mas isso impediu nada. Foi apenas o ponto de partida. Bulimia porque é uma doença causada na busca, principalmente das mulheres, em alcançar um padrão de beleza impossível.
Certa vez, assistindo a MTV, Bianca ouviu uma das apresentadoras soltarem: “acho feio uma mina dar em cima de um cara” e nasceu a música Lute pela sua vida. Outra vez, as letras eram dedicadas às besteiras machistas ditas na televisão ou ironizando com a geração que cresceu ralando na boquinha da garrafa. “Crianças arregaçadas ralando o tchan na TV / Num programa brega de um dá cu do SBT / Um velho assiste e baba atiçando sua tara / Crianças estupradas desconhecem o porquê / Nós apoiamos a prostituição infantil / Nós somos o é o Tchan do Brasil.” // Bulimia – Orgulho do Brasil.
Bianca não limitava o trabalho como guitarrista da banda. Ela produzia um fanzine, distribuía as fitas gravadas pela banda (o ano era 1998), que com dados da própria cantora chegou à 3 mil vendas. Isso sem falar nas gravações piratas e no boom da internet. Em quase quatro anos de banda, elas viajaram, gravaram CD e ajudaram a modificar a vida de pessoas por ai. “Agora é normal ter meninas em bandas, é normal ter meninas nos shows... Na minha época, dava para contar quantas meninas tinham nos shows. As coisas mudaram muito.”
Verdade seja dita mudaram mesmo. A nossa baixista Lola que o diga. Com o passar do tempo ela conseguiu, enfim, ter uma banda de garotas reconhecida na cena local. A Girlie Hell acabou de lançar EP (CD com número menor de faixas), venceu um concurso paulistano com mais de 400 inscritos e o céu é o limite. Se ainda é punk ou feminista? Nenhuma coisa, nem outra. Mas as garotas chamam atenção pela forma com que abordam relações amorosas (será que há amor?). Lola diz que sim, mas não só: “nas letras nós mostramos que amamos os garotos, mas que eles não são a razão do nosso viver”. Rock’n’roll com pegada, cerveja e revela o que elas realmente querem com alguns garotos. “Boy, I like you, you good lookin, nice hair, great body, good car…Just want you tonight. Shut up!” Girlie Hell – Tonight.
Já para Cindy o caminho foi diferente. Embora ela ainda tenha pretensões musicais, a maior lição que ficou do movimento Riot Grrl foi o feminismo. Tanto que começou a militar em movimentos sociais aos 14 anos. Mesmo que ainda não esteja em atividade politica, Cindy considera-se uma “feminista de segunda onda”, ou seja, radical. “Mesmo que o tempo tenha passado e um pouco de maturidade agregada, ainda acredito que somente a via revolucionária colocará homens e mulheres em igualdade real”.
Há mais de dez anos do início do Bulimia, abrir o email ou o Orkut ainda causa algumas supresas para Bianca. Meninas de todo o país, ainda entram em contato com a artista para contar como a influência da banda foi importante em suas vidas. Para Cindy, o Riot Grrl foi uma espécie de ponta pé para a descoberta do feminismo. “Qualquer outra coisa poderia impulsionar essa mudança nas meninas e fico feliz que o Bulimia cumpra esse papel”. Assim, ela continua sua carreira nos vocais da banda Pulso e trata da temática de uma forma diferente. “Somos escravos-fugitivos de nossa liberdade e a tal felicidade da qual tanto falam está logo ali, atravessando as convicções” (Pulso – Avante!). Riot Grrls never die.
** trechos de músicas do Bulimia.
p.s.: Esse texto foi feito originalmente para a disciplina Jornalismo Literário, do meu curso de Jornalismo (dert, óbvio). Se ficou literário... já é outro assunto, bjs!